Triste destino
César Benjamin
16 de junho de 2005
Retornei do exílio em 1978, antes da anistia, animado com a retomada do movimento operário e o fortalecimento do movimento democrático no Brasil. Como muitos da minha geração, dediquei meus melhores esforços, nos anos seguintes, à construção do PT. Fui membro da direção nacional. A primeira eleição presidencial depois do regime militar, em 1989, encontrou-me na linha de frente. Chorei o trauma de uma derrota politicamente fraudulenta. Nos dias seguintes ao resultado, junto com cerca de 6 mil militantes e simpatizantes do PT, fui para a porta da Rede Globo de Televisão, no Rio de Janeiro, protestar contra a edição do último debate entre Lula e Collor, a exibição de seqüestradores do empresário Abílio Diniz com camisetas do PT e a manipulação de uma mulher pobre e ressentida, que havia recebido dinheiro para macular a vida pessoal do nosso candidato. Viajei em seguida a São Paulo, onde encontrei Lula. Tivemos um diálogo curto, que nunca esqueci. Lula me disse: “Cesinha, sabe quem me ligou nesses dias? O Alberico, da Globo. Jantei com eles anteontem. Derrubamos quatro litros de uísque. Eu pedi que não se preocupassem, que estava tudo bem entre nós. Não vou brigar com a Globo, não é, Cesinha?”
Apesar dos anos passados, a citação é textual. Fiquei muito perturbado ao saber, pelo próprio Lula, que, no mesmo dia em que a militância do PT protestava na rua, para defendê-lo, ele “derrubava quatro litros de uísque” com a direção da emissora que o havia agredido e humilhado, reiteradamente, nas semanas anteriores. A conversa serviu, para mim, como um sinal amarelo sobre o caráter do nosso líder. Mas sua imagem só desmontou definitivamente em 1994, quando bancos e empreiteiras começaram a financiar pesadamente o PT, à revelia da direção nacional e da militância, mantidas na ignorância dos novos esquemas paralelos.
Começou então a ascensão de uma “esquerda de negócios”, fenômeno novo em nossa história. Incentivados e promovidos a cargos de direção, os “operadores” ajudaram a consolidar o poder da Articulação no PT. As relações internas foram fortemente contaminadas pela circulação de dinheiro, em geral para financiar campanhas e garantir lealdades. A honra de pessoas e o cadáver de Celso Daniel ficaram no meio do caminho, mas Lula chegou onde queria chegar. Depois de vários anos de sucessivas demonstrações de vassalagem, foi ungido. (Brizola, que enfrentou a Globo em defesa de Lula, foi destruído.)
O PT levou para a Presidência da República as mesmas práticas testadas e aprovadas na luta interna, mas agora em escala muito ampliada. Os operadores passaram a operar freneticamente, aliás em ambiente propício. O que já foi divulgado é uma pequena fração dos malfeitos. Lula encontrou pronta uma forma espúria de organizar o poder político da Nação e, em vez de lutar para alterá-la, como era sua obrigação política e moral, adaptou-se a ela. Forças de natureza supranacional, representantes dos nossos credores, continuaram a ocupar o Banco Central e o Ministério da Fazenda; a partir dessas posições, manejando as políticas monetária, cambial e fiscal, bem como a execução do orçamento, elas controlam e subordinam a ação de todo o Estado brasileiro. O Legislativo continuou a ser o espaço onde se expressam demandas de natureza subnacional, negociadas caso a caso, na margem, de acordo com a necessidade de composições políticas em cada momento. O aparelho de Estado continuou a ser tratado como butim. E o povo pobre continuou a receber as migalhas das políticas compensatórias. Nesse arranjo, nenhuma instância cuida seriamente dos interesses da Nação, que por isso permanece à deriva. É assim que se faz política no Brasil. A Presidência da República, porém, é uma instância muito complexa, para onde convergem todas as demandas e interesses. Na ausência de um projeto qualquer, inexiste um eixo ordenador das negociações, de modo a impor limites aos apetites de cada parte. Lula e o PT submergiram na política do varejo, atendendo ou deixando de atender cada interesse conforme as pressões do momento, cada vez mais ponderadas pela grande meta da reeleição, a única que de fato os interessava. Com o tempo, o governo foi se tornando inconfiável para todos. E cometeu o erro fatal: deixou de honrar a palavra empenhada, rompendo assim o primeiro mandamento de qualquer cosa nostra. O deputado Roberto Jefferson deu o troco.
Fala-se agora em reforma política. É mais um blefe. O problema não é de novas regras formais, feitas, como as outras, para serem burladas, mas de conteúdo. O esquema atual é sustentado por uma aliança paradoxal, que vem sendo renovada em cada eleição, dos mais ricos, que comandam sempre, com os mais pobres, que apenas votam a cada quatro anos. Essa aliança tem como alvo preferencial o mundo do trabalho e suas instituições. Os direitos associados ao trabalho, jamais universalizados, são denunciados como privilégios, num país em que os verdadeiros privilegiados são invisíveis à grande massa da população. O ressentimento popular contra a desigualdade é usado para destruir as ilhas de cidadania, que deveriam ser justamente os pontos de Arquimedes onde a Nação poderia apoiar suas alavancas para desenvolver-se, puxando os que ficaram para trás. Collor inaugurou essa aliança no terreno simbólico. Fernando Henrique deu seqüência a ela, utilizando-se do Plano Real, que permitiu uma convergência momentânea de interesses tão díspares. Hoje, Lula é quem faz a ligação, que agora é simbólica (pelas origens dele) e material: oferece por ano R$ 150 bilhões em juros para os mais ricos e R$ 10 bilhões, pulverizados, em bolsa-família para os mais pobres. Cumpre bem esse papel. Não será atingido por nenhuma investigação. Está blindado. Mas é refém.
Triste destino, o do PT: em 1989, apontava que a aliança correta, aquela capaz de retirar a Nação da crise, tem de ocorrer entre o mundo do trabalho e da cultura, de um lado, e os mais pobres, de outro, com a subseqüente reforma de instituições e costumes. Em 2002, tornou-se um instrumento da aliança espúria que mantém o Brasil em crise crônica. Continuará a existir como uma legenda a mais na política institucional, cada vez mais distanciada da vida do povo. É tudo melancólico e patético para quem, algum dia, sonhou em mudar o país. Estamos assistindo ao fim de um ciclo na existência da esquerda brasileira, um ciclo que não deixa legado teórico, político ou moral. Resta saber como e quando ela se recomporá. Seja como for, o PT pertence ao passado.
César Benjamin é editor e autor de A opção brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom combate (Contraponto, 2004).
segunda-feira, julho 24
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